A Zona da Primitivo

Fabulações sobre uma História Perdida

Este texto entrelaça fabulação literária, história oral, especulação filosófica, devaneios e narrativas confessionais para recriar um território extinto às margens do rio Tapacurá, na cidade de Vitória de Santo Antão. Com base em relatos, invenções e relações afetivas – que são, por natureza, dinâmicas, múltiplas e repletas de sobreposições –, costuro minhas memórias: deslocamentos no tempo.

Os tempos áureos da Zona da Vitória de Santo Antão

Por Durval Cristóvão

Traço a traço, com contornos esfumaçados e poéticos, num jogo de sombra e luz, recrio lugares, territórios, fronteiras, identidades, linguagens e relações de poder. Quero conduzi-los por uma rua proibida. Nela, as mulheres que se “davam ao respeito” não passavam. Isso de “se dar ao respeito” deve ser lido assim: mulheres obrigadas a seguir a cartilha do patriarcado. Minha mãe era uma delas. Formada nessa “escola de mulheres”, com certo ressentimento, disse-me: “Quando eu ia pegar o trem para casa de titia, seu avô me arrastava por lá. Naquela época [1970], o trem ainda não parava em Redenção. Seu avô sabia que eu tinha medo daquela rua e fazia por pirraça. A gente passava bem cedo, antes das cinco”. Minha mãe é uma das vozes neste texto. Ela representa a mulher que fica em casa, que sabe da vida dupla do marido, mas tolera seus desvios. Uma casa de família, tradicional ou não, para resistir aos “apodrecimentos”, cedo ou tarde, torna-se uma casa de tolerância.

Eu mesmo frequentei a Zona na segunda metade dos anos 2000, já na sua decadência. Nas minhas incursões por lá, conheci Pelourinho – Pelô era o seu apelido –, um preto, retinto, que colocava cartas e fazia infusões com ervas mágicas. Preto-mago, bruxo dos guetos, das bocas, dos bichos, dos malandros, das bichas, dos ladrões, dos assassinos e das putas. Vivia num pequeno quarto, dois por dois, que mal comportava uma cama. Dizia Pelô: “Moro num condomínio”. No topo de uma ladeira, no beco de Seu Toinho – viela que, em toda a sua extensão, de ponta a ponta, era cortada por um esgoto –, morava o preto Pelô, no fundo dos fundos de outras casas. Quando entrávamos no “condomínio”, passávamos por uma grade com setenta centímetros de largura e um cadeado velho. Depois de alguns passos sobre um chão de cimento grosso, esburacado, via-se à direita um estreito corredor, repleto de pequenos quartos, seis ou sete, com um banheiro coletivo ao fundo. A posição estratégica do “condomínio” serviu ao tráfico por longos anos: de lá, por cima do muro, podia-se ver as duas entradas do beco. Os quartinhos pareciam casinhas com portas de madeira, daquelas que os antigos chamavam de “dois rolos”, pois se podia abrir a parte superior, transformando a porta em janela.

Em uma de minhas visitas, ouvi Pelô dizer: “Eu tô plantado aqui faz tempo, mas não é lugar de se demorar. Quem tá aqui quer sair, mas eu me acostumei, sou acostumado.” Para os frequentadores, a Zona é um não-lugar, local de passagem em que não é possível criar vínculos profundos. Mas para aquele preto velho era diferente. Fez sua vida ali, só saia numa emergência. Outros lugares eram memórias distantes.

Ele colocava cartas para mim, um baralho comum, desses com ás de copas. Eu gostava do perigo: do medo de ser descoberto pela polícia, pelos meus pais, pelos meus amigos de classe média, de ouvir música na radiola (passa-discos), de tomar vinho à base de gengibre (Quentinho) e de ouvir histórias. Hoje, vinte anos depois, me pergunto: o que me levou ali? Numa leitura que fiz esta manhã, me ocorreu a seguinte ideia maluca: o gosto por alguns “marginais” na adolescência, como Jean Genet, Marquês de Sade, Waly Salomão, Nicolas Behr e Glauco Matoso (com os dois últimos, cheguei a me corresponder, trocava e-mails e recebia presentes pelos correios), teria me levado a correr certos riscos? Será que a leitura pode ser considerada um “ato de anexação, com consequências dramáticas”? Deixa-me explicar essas filosofices: essa ideia sugere que há coisas lidas que podem ser representadas e outras que permanecem guardadas na gente, no campo do irrepresentável. Essas podem levar a tais “consequências dramáticas”. Fazer uma ligação entre a leitura de autores marginais e a propensão a certos riscos pode parecer um exagero ou até uma irresponsabilidade intelectual – talvez seja.

Retorno da digressão: soube, faz dois anos, por uma amiga que me acompanhava e que me abriu as portas desse submundo, que Pelourinho infartou na mesma cama em que o conheci, no mesmo quarto. No dia da sua morte, essa amiga – que me apresentou a ele – estava ao seu lado. Disse-me assim: “Meu irmão! Foi foda! Pelô morreu na minha frente. Liguei pro Samu, aquela exposição, hospital, polícia...”. Para alguns, como para essa amiga, essas memórias devem ser contadas como um cochicho. É coisa que ameaça, que coloca em risco aquele que lembra. Faz dias que tento conversar sobre aquele tempo, mas ela resiste, desconversa.

Além de Pelô, por intermédio dessa amiga, conheci Lena, que trabalhou no Cabaré Sete Estrelas. Lena foi uma das estrelas da vida noturna. Sua casa, na primeira década dos anos 2000, funcionava como um bar. Para mim, Lena abria as portas do íntimo, cedia sua cama, seu quarto. Eu aparentava quatorze ou quinze anos, embora já tivesse dezoito. Era um menino branco, com cara de criança, cabelos e olhos castanhos. Isso ajudava a me tornar insuspeito. Ficávamos, minha amiga e eu, por horas, bebendo, fumando e ouvindo música. Na época, não fazia ideia de que estava na cama de uma das estrelas da Zona. Soube esses dias, durante uma entrevista.

Em 2007, Edson Ribeiro (produtor cultural, agitador da cena local e vitoriense) e eu iniciamos uma pesquisa para recuperar parte da história de alguns personagens, gays e travestis, que frequentavam ou moravam na Zona. Tínhamos uma fotografia: nela estavam quatro personagens gays, cada um vestindo uma camisa com o nome “Brasas” – certamente em referência à gíria eternizada pelos brotos da jovem guarda: “É uma brasa, mora!”. A expressão era usada para designar algo excepcional, incrível, fantástico. Aquelas quatro figuras reunidas estavam prontas para brincar o carnaval. Brasas era um bloco carnavalesco, uma fantasia, uma afirmação de identidades dissidentes, marginalizadas, que encontravam no carnaval um espaço seguro para existir fora dos guetos.

Com aquele vestígio em mãos, uma fotografia, Edson e eu fomos atrás de histórias sobre as “Brasas”. Nas cercanias da Zona, na ladeira em frente ao Cineteatro Iracema, morava Sibiu, um carnavalesco conhecido por ter trabalhado na cozinha do Posto de Sitonho. Nós achávamos que Brigitte era a personagem principal do trabalho que pretendíamos realizar e insistimos nela. Sibiu contou que Brigitte era coxa porque fora ferida pelo irmão com uma chave de fenda. Ela ganhava a vida tecendo cadeiras de vime e era conhecida por ser arredia. Sibiu disse que não se davam bem. Em 25 de dezembro de algum ano da década de 1970, Sibiu desejou feliz Natal a Brigitte e ouviu um sonoro “Vai tomar no cu! Você, Feliz Natal, Menino Jesus...”. Brigitte Bardot, símbolo sexual, ativista, famosa por suas personagens empoderadas e hedonistas, misturava-se à imagem que fazíamos da nossa Brigitte. Além dessa estrela, certamente havia outras: as monas chamavam a Zona de Hollywood.

Com 86 anos, em 2007, conheci Zefinha de Menezes, dona do Cabaré Feijão Verde. Ela ainda morava na Zona. Fui visitá-la e lembro-me do contraste entre a foto dela jovem, pendurada na parede, e a senhora sentada no sofá logo abaixo. Zefinha me contou que conheceu muitos homens importantes – políticos, empresários, a elite da cidade – e que, todos os anos, em 8 de dezembro, dia de seu aniversário, recebia a visita de antigos clientes para cantar parabéns.

Zefinha era a prostituta viva mais antiga da cidade. Disse-me, quando perguntei sobre o dia a dia no bordel, que orientava as meninas, que dava conselhos. As mulheres deviam fingir e agradar: “Puta bêbada não fatura!”. Ela bebia refrigerantes e outras coisas, mas fingia que era bebida e pedia pros homens pagarem. Enquanto conversávamos, pessoas chegavam à sua porta para pedir comida. Zefinha as alimentava. Era uma senhora de riso fácil, segura e bonita. Ela contava com a ajuda de alguns, mas era sozinha. No ano que a conheci, as Brasas desfilaram no carnaval – uma iniciativa minha e de Edson Ribeiro. Zefinha Menezes foi homenageada.

Essas histórias, duras e tristes, têm beleza trágica. Corpos eram explorados, pagava-se uma miséria. Mulheres vinham de outras cidades para ganhar a vida em Vitória, algumas ficavam presas com dívidas. Nós tínhamos uma das maiores Zonas do estado de Pernambuco. Antes de ocupar a Rua Primitivo de Miranda, os cabarés funcionavam no final da Avenida Mariana Amália, numa área conhecida como Sapo Velho. Segundo o historiador Cristiano Pilako, em 1886, com a chegada do trem, os bordéis cresceram vertiginosamente. Em sua hipótese, mesmo antes do trem, as viagens a cavalo eram longas e a cidade – parada estratégica para viajantes que iam para capital ou seguiam para o Agreste ou Sertão –, servia de abrigo aos viajantes, em geral comerciantes que iam pegar encomendas no porto, no Recife. Esses homens, longe de suas casas, sem raízes na cidade, alimentavam a prostituição.

Na década de 1970, a Zona era uma rua repleta de bares. Nossa investigação se deteve mais nesse período porque os que testemunharam o auge do lugar viveram ali naquela época. Um dos entrevistados, o Ministro da Zona, que continuava trabalhando nos arredores com jogo do bicho e outras jogatinas, disse sobre a geografia do lugar: “Na rua principal, do lado direito... deixa eu ver... tinha uns vinte bares. Esquerda e direita, vamos botar quarenta. Mais os becos: uns oitenta! Oitenta não, mais de oitenta. Aquilo ali era um labirinto. Toda casinha era um negócio.”

Meu pai começou a frequentar os cabarés dessa rua quando ainda era adolescente, no final da década de 1960. Hoje, tem setenta e cinco anos. Minha mãe, com 70 anos, contou que, quando começaram a namorar, ele saía da escola, dobrava o caderno de capa mole, enfiava-o no cós da calça e, montado em sua bicicleta Monark verde, cruzava o bairro nobre da cidade – Matriz – num pé de vento, em direção à Zona. Quando passava em frente ao Cineteatro Iracema, no topo da ladeira que ligava o bairro da Matriz ao chamado baixo meretrício, ignorava os cartazes dos filmes e os casais apaixonados saindo do cinema depois da última sessão. Para se divertir, segundo minha mãe, meu pai preferia outros programas.

Há alguns dias, durante nosso trajeto habitual de carro, meus pais e eu temos conversado sobre a Zona. Com certo ciúme, minha mãe insistiu em um nome: “Marlene! Pergunte a seu pai quem era Marlene.” O velho desconversou: “Só era o que tinha pra fazer naquele tempo”. Minha mãe retruca: “Ah! Ele vivia socado na casa dessa Marlene. Uma vez, seu pai desapareceu, ninguém sabia dele. A sua avó foi bater na casa dessa Marlene”. Outra fuga de meu pai: “Tinha o Feijão Verde, o Bar da Galega, Dona De Lima, que fazia papa...”. Incisiva, emendou minha mãe: “Ah! Tá explicado! Então, é por isso que ele gosta tanto de papa”.

Todos os homens que entrevistei, para evitar julgamentos morais, repetiam em coro a mesma frase: “Naquele tempo era assim”. Essa ideia de que as condições históricas determinam um comportamento merece um exame mais aprofundado à luz de Michel Foucault e Hannah Arendt. Deixo as pistas aqui: em Foucault, a ideia de moral cristã normativa, distinta das moralidades antigas – estas voltadas à atividade de pensar (exame de si) e à autonomia – pode ajudar a compreender a falta de responsabilização presente nas moralidades cristãs, que tendem a atribuir o erro a algo externo ao agente ou a enrijecer os modos de ser, produzindo intolerantes e fanáticos. Com Hannah Arendt, podemos refletir sobre o agir moral conduzido por regras, apartado da atividade de pensar, o que pode levar o agente a aderir a ideologias como o nazismo. Pronto, fiz uma provocação político-filosófica. Nem sei se era necessária. De forma grosseira, posso resumir essa provocação filosófica na seguinte sentença: quanto mais repressão, mais putaria! Agora, estou mais leve. Depois desse grito, volto para a história nos parágrafos seguintes. Vou continuar a descrever a descida do meu pai ao inferno – ou melhor, ao inferninho.

A cafetina preferida dele era Marlene – dava para ver nos olhos da minha mãe. Meu pai, ofegante, com o fundo da calça de linho suado, encostou a Monark verde na parede caiada com tinta rala e enquanto cantarolava umas notas de Vingança, de Lupicínio Rodrigues, atou as correntes de proteção na bicicleta.

Dentro da casinha de Marlene, na radiola, podia-se ouvir Dalva de Oliveira, Orlando Silva, Nelson Gonçalves, Raul Seixas, Roberto Carlos, Altemar Dutra... A namorada do meu pai o recepcionava com uma cerveja. Sim, namorada, a outra. Quem me contou foi um amigo dele, o tal Ministro da Zona. Disse-me a autoridade em putaria: “Os homens costumavam ter duas namoradas: uma em casa e outra na rua. Era comum isso em Vitória. Eu fui para cabarés em outras cidades, o sistema era diferente. Em Escada, a mulher combinava logo, não tinha isso de ficar bebendo, perdendo tempo com homem na mesa. Aqui, não! A mulher passava o dia todo com o cara, dormia e tudo mais, as coisas eram mais frouxas”. Nesse dia, de frouxidão em frouxidão, meu pai dormiu na casa de Marlene.

Deu a hora do “tranca”, quando a polícia passava para fechar os bares e o movimento ficava restrito ao interior das casas – não entrava mais ninguém, só era possível sair. Na mesma época, um homem de terno branco passava para recolher os menores de idade – só os meninos. As meninas que se prostituíam trabalhavam sem qualquer assistência do Estado. Era ditadura militar no Brasil. O carro velho da polícia que fazia os homens deitarem o olhar num misto de reverência e medo era um Chevrolet Veraneio, fumegante. Barbosa (nome fictício), um policial que fazia ronda na Zona à época (1970), contou que o carro só pegava no empurrão e que, por dentro, as partes que faltavam eram preenchidas com papelão. Perguntei sobre os valentões. Ele falou: “Pata de Onça. Que eu me lembre assim, tinha Pata de Onça. Era danado pra ter confusão. Lugar com bebida, gente armada: revólver, faca. Tinha gente que bebia e não pagava. Acertava uma coisa com as meninas e não honrava o compromisso. Era o chamado ‘xexo’. O camarada que dava o ‘xexo’ não era bem-visto”.

Sobre as valentias, Edson Ribeiro me falou sobre Zulmira, um homem gay que enfrentou a polícia. Zulmira teve uma desavença com uma prostituta, amante de um militar. Em companhia dos seus, tomando as dores da prostituta, o policial espancou Zulmira. Tempos depois, quando subia a ladeira do Cineteatro Iracema, Zulmira deu de cara com seu agressor e não hesitou: deu-lhe uma surra e tomou-lhe o revólver. Depois disso, Zulmira sumiu.

Na Zona, havia bares geridos por homens, mas a maioria das casas era comandada por mulheres: Zefinha Menezes, do Feijão Verde; Lurdes, do Sete Estrelas; Marlene, que fica perto do Bar do Arpejo; Macarrão, que tinha uma filha cobiçada; Galega; Suzana; Judith; Maria Guarda-Roupa, que vendia guaiamum; Maria Peruca; Maria de Jau; Dona Baianinha; Dona de Lima – e tantas outras que a história esqueceu. Essas mulheres – que eram donas, que eram livres –, mesmo inconscientes de seus atos revolucionários, abriam espaço para que outras as vissem como possibilidade de emancipação. A minha mãe, com admiração apaixonada pela transgressão de uma daquelas mulheres, me disse: “Meu filho, a Galega andava a cavalo! A cavalo!”.

1- Nelson Rodrigues, dramaturgo brasileiro, frasista excepcional, dizia: “[...] toda família tem um momento em que começa a apodrecer. Lá um dia aparece um tio pederasta, uma irmã lésbica, um pai ladrão [...]”

2- Trecho extraído de Paulo Ghiraldelli Júnior, do texto 10 lições sobre Sloterdijk, p. 12-13.

3- Mingau feito com leite, amido de milho, açúcar e aveia.

4- No início, o “tranca” começou à meia-noite, depois foi estendido para as duas da madrugada.

5- Seu Brivaldo, do Salão Azul; Geo, que vendia quartinhas de cachaça com buchada; Vavá, dono de um quartinho de madeira no meio da ladeira antes da Zona; e Lourinaldo, do Canecão.

Crédito das Imagens e agradecimento a: