Caminho pra não Esquecer

Uma caminhada pela feira livre em Vitória de Santo Antão, espalhando memórias e imagens deixadas pelo caminho.

Caminho pra não Esquecer

Por Débora Bittencourt

Usando como dispositivo pequenos monóculos pendurados por fitas de cetim em uma vara de madeira, a ação performática Caminho pra não esquecer, consistiu em fazer um trajeto pendurando esses relicários pelo espaço urbano, deixando pelo caminho os vestígios da minha passagem, assim como as imagens contidas ali são vestígios da passagem do tempo, das pessoas e de lugares próximos, alguns irreconhecíveis.

Ao me deparar com as fotos encontradas no acervo de Raminho, logo no início da pesquisa, uma cidade totalmente diferente se abriu pra mim. Imaginei pessoas, situações, modos de vida e senti um desejo genuíno de compartilhar algumas destas imagens, além de uma curiosidade sobre as pessoas que foram registradas e eternizadas naquelas fotografias.

A feira foi o local escolhido para a ação, fazendo um percurso que começava pela praça João Pessoa (onde fica o antigo Cine Iracema, local já recorrente dentro da pesquisa), passando pela Rua André Vidal de Negreiros (também conhecida como Rua da Águia) e seguindo pelas ruas da feira até o antigo mercado.

Estas ruas trazem uma forte referência imagética pra mim. É o lugar preferido da minha mãe na cidade. Sempre gostei de andar pelos seus caminhos labirínticos em busca de alguma coisa ou de coisa nenhuma, só por andar e ser tomada por todo aquele excesso de informação, cores, cheiros e sons, tudo ao mesmo tempo. Sempre me perco e me acho ali, nunca decoro pra que lado está tal coisa, desorientada que sou, mas sempre acabo achando os lugares que eu preciso.

Esse excesso de vida ganha um contraste quando chegamos em espaços como o antigo mercado abandonado e sua escadaria, que emana uma sensação de vazio e abandono. Assim como vários becos estreitos, alguns sem saída, que dão mais ainda essa impressão de labirinto no lugar. Tem também muitas portas para lugar nenhum. Todas estas contradições pra mim parecem dizer muito sobre o que é viver nesta cidade. Queria um drone pra ver de cima aquele caos. Queria fazer um mapa dali, com os pontos preferidos de mainha, todos os seus conhecidos, o bar em que Luiz gosta de tomar cachaça aos sábados, o outro que sempre toca Roberta Miranda, os artigos de macumba, a feira de barro e de plantas, lojinhas de aleatoriedade chinesa, ervas, grãos, tecidos e coisas que só se pode encontrar ali: vassouras e peneiras de palha, sacola de feira daquelas antigas, olho de boi, sucupira, romã, bucha, pimentas mil. Ali parece que passado e futuro se conectam, criando uma temporalidade única e alheia a qualquer conexão com o tempo da realidade de fora dali.

Inspirada por aquele espaço e tantas sensações que ele me traz, trouxe outras imagens para serem compartilhadas: pessoas comentadas durante o processo da pesquisa, fotos antigas dos amigos, familiares, amigos que se foram.

O ato de apenas caminhar carregando aquele objeto foi um gerador de curiosidade nos feirantes e alguns transeuntes, principalmente nas pessoas mais velhas, que reconheciam o objeto com surpresa. Se vendo as fotos apresentadas ali não reconheciam o espaço ou a pessoa trazendo alguma memória à tona, o objeto que as continha os faziam recordar de fotos de suas famílias, dos fotógrafos de lambe-lambe ou outras lembranças pessoais. Outros queriam levar aquelas lembrancinhas.

Em 2024, fui visitar minha tia avó, Ricardina, que adorava falar sobre outros tempos, e pedi para gravar algumas destas histórias ali mesmo, no terraço, com as crianças brincando à nossa volta. Queria registrar um pouco das suas lembranças para uma conversa futura, lhe falei sobre a pesquisa e combinamos que ela traria algumas fotos antigas, guardadas na casa de outra filha, para me mostrar e eu lhe faria algumas perguntas mais direcionadas ao projeto. Do alto dos seus 92 anos, tinha uma memória rica em detalhes e uma satisfação em contar sobre as coisas de antigamente - dava pra ver nos seus olhos o quanto saboreava o exercício de buscar lá no fundo da mente até trazer à tona datas, nomes de pessoas e sequências de acontecimentos. Infelizmente, ela se despediu antes que fosse possível nos encontrarmos para mais uma conversa e aquela gravação ficou guardada junto com a ideia de ver suas fotos junto com novas antigas histórias.

Durante o processo de criação da performance, algumas das suas falas vieram à tona e, voltando a escutar a gravação, escutei falas não só sobre a feira, pessoas e espaços retratados nas minha seleção de fotos, mas também sobre a sua própria memória. Resolvi me guiar por estas imagens sonoras para costurar meu trajeto através do vídeo - esta ferramenta poderosa em reunir diferentes temporalidades dentro de uma mesma janela. Outra vez, numa conversa não gravada, lembro dela contar que tinha um caderno onde anotava o nome de todas as pessoas que conheceu e que se foram, lamentava que quase já não existiam pessoas da época da sua juventude para lembrar juntos. Como um exercício, ia puxando o fio da memória, recriando famílias inteiras, suas casas, ruas… tudo para não se esquecer.

Débora Bittencourt

Me formei em Cinema e Audiovisual pela UFPE e atuo nas áreas de produção, curadoria, assistência de direção e formação. Acreditando no poder da arte de nos transmutar através de diferentes linguagens, modos de ser e atuar no mundo, já participei de exposições e mostras, realizei registros de diversos trabalhos artísticos e trabalhei na realização de videoclipes, curtas, longas e séries pernambucanas.

Me interessa pesquisar as relações entre imagens e educação, feminismos e espaço urbano (sobretudo no contexto do interior pernambucano e da minha cidade natal, Vitória de Santo Antão). Atualmente participo da curadoria e produção do Mosaico Cineclube, atuo como educadora de audiovisual e fotografia para crianças e adolescentes do ensino público e crio trabalhos de encadernação artesanal através do suporte da fotografia.

Ficha Técnica

Concepção e Performance: Débora Bittencourt

Direção de Fotografia: Brenda Silva

Produção: Sammia Gonçalves

Assistência: Kell Soares, Kleber de Oliveira e David Oliveira

Montagem: Débora Bittencourt

Imagens adicionais e Still: Karlla Dayane

Agradecimentos: Gabriela Santana, Sumaya Bittencourt, Kesia Duarte, Fátima, Ana Lúcia da Silva

Em memória de Ricardina Guedes