Cristina Francelino e a Cia dos 10

A Trajetória de um Grupo de Artistas que transformou a Cena Cultural Vitoriense

No ano 2000, em frente ao Cineteatro Iracema, numa pracinha tomada por um bar conhecido à época como Bar de Gena, iniciei minha trajetória no teatro. No mesmo ano e cidade, a Companhia dos 10 inaugurou um Espaço Cultural – que também era escola de teatro – na Rua Melo Verçosa, quase em frente ao Beco da Sipaúba. Fui aluno do primeiro curso de teatro oferecido pela Cia. – era a abreviação que mais usávamos do nome do grupo. Lembro-me do som metálico que a porta de rolo fazia ao ser fechada – prenúncio de um novo mundo que se abriria em instantes. Atrás daquela porta, a vida era sonho e passava no tempo de quem saboreia uma fruta gostosa.

Por Durval Cristóvão

No curso, tínhamos aulas de expressão corporal, técnica vocal e interpretação. Depois, ao ser incorporado ao grupo, frequentei as rodas de leitura e estudos realizadas aos domingos, onde líamos “A preparação do ator”, de Constantin Stanislavski*. O teatro é um meio para exploração de si e do mundo que não esgota riquezas, ele permite que vejamos a nós mesmos e aos outros em ação e que, através dessa visão, possamos “transver o mundo”**.

Em pouco tempo de existência, o projeto artístico-pedagógico desenvolvido pela Companhia dos 10 expandiu-se para outras linguagens e ocupou um lugar de prestígio numa cidade que não tinha teatro, cinema nem política cultural (infelizmente ainda não temos, as coisas continuam improvisadas demais). Mas, certamente, o futuro teria sido pior sem esse lugar de confluência. Naquela época, eu tinha a impressão de que tudo desaguava ali. Tudo quer dizer pintores, desenhistas, escultores, atrizes, escritores, músicos, cineastas, cantoras, fotógrafos, bailarinos. O caldo da cultura engrossava ali, mexido pelas mãos dos 10, pelas mãos de centenas e milhares que passaram por ali, de uma comunidade de artistas e espectadores.

Quando, na sala da sua casa, Cristina Francelino – educadora, multiartista, mulher negra de origem simples – reuniu artistas para a criação de um grupo de teatro, certamente não imaginava que o gesto fosse repercutir por longos anos. O desejo que mobilizou sua ação foi a busca de pertencimento, queria um lugar para viver e para existir – dar durabilidade à vida por meio de ações. Em entrevista concedida a este sítio, Cristina disse que na época em que iniciou o grupo se sentia deslocada na cidade, queria encontrar um espaço para pertencer, criar, emoldurar a vida – existir. Uma ação política, como a sobredita, não existe pela força de um. Como lembra a teórica da política, Hannah Arendt, “[...] ninguém, por mais forte que seja, pode realizar alguma coisa, boa ou má, sem a ajuda de outro.”. Quem inicia, em geral, não sabe se seu desejo encontrará eco no desejo de outros.

Em 1999, num bairro periférico de Vitória de Santo Antão, em uma casa situada mais ou menos no meio de uma ladeira, Cristina Francelino abriu suas portas para renovar a cena cultural da cidade. Eu frequentei essa casa, tinha treze anos e lembro de fazer almoços coletivos com os integrantes da Cia. Na época, existia atividade teatral relevante na cidade: o grupo Vid’Art era responsável pela MOSTEV – Mostra de Teatro Estudantil da Vitória –, um importante projeto onde montavam espetáculos com estudantes de escolas públicas e contribuíam para formação de plateia. Diferente do Vid’Art, que costumava oferecer oficinas e integrar os alunos ao seu quadro de atores, a Companhia dos 10, ao promover o curso de iniciação ao teatro, a princípio, tinha o interesse na manutenção do espaço como forma de dar continuidade a uma investigação de linguagem fundamentada na experimentação e na pesquisa. Cristina Francelino e Moisés Gonçalves (integrante do grupo em sua formação inicial) eram alunos do curso de Artes Cênicas na UFPE, no Recife, e esta relação com a universidade imprimiu na companhia um interesse pela pesquisa.

Mesmo quando não nomeada, a universidade habitava o imaginário do grupo como uma espécie de fantasma à espreita – uma presença difusa, mas determinante, que inscrevia parâmetros de julgamento estético e influenciava, ainda que de forma implícita, os rumos da criação. Aquele grupo de atores e atrizes queria ocupar um lugar na cena pernambucana, obter reconhecimento, fazer temporadas em outras cidades. No entanto, apesar de pensar nessa vida fora da cidade, percebeu que se fortaleceria ao desenvolver sua aldeia. As ações político-pedagógicas ocupavam cada vez mais espaço na vida do grupo, que passou a fazer mais pela cultura da cidade do que o Poder Público.

Pouco tempo após deixar a casa de Cristina, o projeto artístico-pedagógico desenvolvido pela Companhia dos 10 ocupou um novo espaço na cidade, expandiu-se para outras linguagens e passou a funcionar como escola de teatro, capoeira, canto e ioga e como galeria de arte. O teatro, por sua vocação pública, como diz Ortega y Gasset, “[...] é o contrário da casa.”. Exige a presença de corpos reunidos, numa assembleia pública, em companhia (palavra que, na sua origem latina, cum panis, refere-se a partilha do pão).

Não demorou para a Cia. dos 10 conquistar espaço nos palcos da capital, realizando temporadas no Recife e participando de festivais. Montagens como Parabéns pra Você, com texto de Sandro Guerra, e O Rico Avarento, de Ariano Suassuna, destacaram-se na trajetória do grupo. Inicialmente, o primeiro espetáculo foi dirigido por César Leão e Moisés Gonçalves. Com a saída de Moisés, que foi trabalhar como professor de Teatro no SESC em Caruaru, César Leão assumiu a direção do espetáculo. Tratava-se de um drama psicológico que narrava a história de Aldo, um homem angustiado que, no dia de seu aniversário, recebia a visita de seus próprios sentimentos: amor, ódio, paixão, medo e culpa. César Leão, o ator mais experiente do grupo, também protagonizava o espetáculo. O segundo espetáculo, dirigido por Cristina Francelino, era uma releitura de Ariano d’O Avarento, de Molière. O personagem principal era um velho avaro (César Leão) que explorava o seu empregado, Tira-Teima (Van Lira).

Ocupar um lugar na cidade, oferecer formação, reunir artistas que necessitam de reconhecimento e visibilidade, inventariar suas obras, colaborar para a implementação de políticas públicas (como o Conselho de Cultura) e repensar as práticas culturais locais é um gesto de construção de território, de afirmação da pluralidade e de oferta de pertencimento aos sem-lugar. Todo território cria fronteiras – e toda fronteira é uma zona de disputa. Desde sempre, os artistas dependeram do Estado ou de mecenas para financiar suas realizações. Durante o primeiro mandato de José Aglailson (PSB), o aluguel da Companhia do 10 era pago pela prefeitura. Em 2005, no segundo mandato, a antiga Estação Ferroviária da cidade, prédio histórico que estava abandonado, foi oferecida ao grupo. Cristina aceitou e começou a luta para revitalizar o espaço e construir um teatro municipal na cidade.

O novo espaço, composto por dois prédios grandes, era mais amplo e conferia maior visibilidade ao grupo. Com isso, o trabalho aumentou significativamente e passou a ter maior apoio da prefeitura e instituições do setor privado. Aos poucos, com muita dedicação, foi construído um palco em um dos prédios e, no outro, foi criada uma biblioteca comunitária com apoio da UFPE (Centro Acadêmico da Vitória). Os trabalhos continuaram: realizaram festivais, exposições fotográficas, oficinas e ações educativas que dialogavam com o território e com a memória local, foi criado um núcleo de turismo. No entanto, em 2008, com a mudança de governo municipal, na gestão de Elias Lira (DEM), tendo Paulo Roberto (MDB) como secretário de Cultura, Turismo e Esportes, o grupo foi desalojado de forma repentina. A Cia. dos 10 enfrentou, então, uma grave crise estrutural e emocional: perdeu grande parte de seu acervo e se viu impossibilitada de dar continuidade às suas produções. Eu estava lá no dia em que aconteceu a tragédia, fiquei perplexo com o que via: um grupo de artistas atuantes estava sendo despejado de sua casa. No dia do ocorrido, liguei para Pablo Dantas, um amigo que tinha uma câmera fotográfica, para criar alguma intimidação e registrar uma possível violência, já que a retirada foi truculenta, inesperada, absurda.

A coragem é uma virtude necessária àqueles que deixam as sombras do lar para enfrentar o clarão do mundo e lutar por interesses públicos. Cristina Francelino é uma mulher corajosa, reconhecida por sua altivez, honestidade e competência na gestão cultural. Embora mantivesse relações com o Poder Público, jamais participou de seu jogo sujo. Fazia política como artista, como mulher negra, como professora de escola pública – e não como um "mau político", alheio ao bem comum e orientado por interesses pessoais, às vezes, escusos.

* Constantin Stanislavski (1863-1938) foi um ator, diretor e teórico russo, considerado um dos nomes mais influentes da história do teatro.

** O poeta Manoel de Barros, em suas lições para ver além da realidade imediata, sugere que há coisas que não levam a lugar nenhum, mas que, apesar disso, são necessárias. A razão de existir dessas coisas inúteis e necessárias não passa por métricas de rendimento e desempenho.